Avançar para o conteúdo principal

log entry: estetoscópios

Imaginem-me sentado na soleira de uma montra de uma loja fora do horário de expediente, quando surge um grupo de rapazolas novos que em notório entusiasmo comentam os artigos em expressões rotundas como, olha aquele que espectacular, aquele é lindo pá!, eu comprei o quinto a contar da esquerda, tás a ver? E eu, curioso, porque não tinha reparado o que vendia a loja, olhei para trás, sobre o ombro e, pasme-se: estetoscópios!

Comprei o quinto da esquerda? Aquele é lindo e espectacular pá? Mas não são carros. Não são telemóveis. Não são televisões. O que fazem três moçoilos novos, de olhos a brilhar, a cavacar sobre estetoscópios às duas da madrugada?

O meu leque de amigos - bem escasso diga-se, pois parece-se mais um abanador de brincar que um leque valenciano – é bastante eclético e nunca, mas nunca, assisti a uma conversa do género. E nem quero. Caraças, os meus amigos às duas da manhã são muito machos! Mas aqueles não estavam a brincar, estavam mesmo vidrados com a espectacularidade do artigo. Será que me enganei na profissão e ainda vou a tempo de me dedicar â venda grossista de estetoscópios. Ainda por cima a palavra não é daquelas que caem que nem ginjas numa conversa entre amigos numa noite de sábado. Como é, por exemplo, a palavra ginjas. Claramente útil no contexto: eh pá, olha ali aquela, marchava que nem ginjas, seguido de grunhidos machos elevados pelo álcool e testosterona. A palavra estetoscópio não desperta o mínimo entusiasmo. E se for dita em voz alta, lenta e silabicamente, ainda parece pior. Tentemos: este-Tó-é-escópio, esteta-o-escópio, estreita-ó-copo, és-tó-tó-és-Cópido…

A este ponto já eu tinha ganho a noite com a conversa, que não era preciso aparecer um grupo de dois casalinhos, que se assoberbam também eles pela loja. A título de curiosidade e de maldade vil, uma das raparigas era uma espécie de morsa com sapatinho raso, azul que não era verde tipo verde que não é azul e um casaco a fazer pendant, os rapazes montanheiros e a outra amiga era simplesmente, vá, a modos que, redonda como um balão de hélio sem hélio e cheio de leitões da Bairrada. E eles a dar-lhe: olha aqueles às cores, olha que ainda vou comprar um e tal por ai adiante, culminando na ideia espectacular de: vamos fazer uma vaquinha para comprar um e oferecer a alguém que não percebi bem, mas desconfio não estar ligado ao ramo da saúde. Saúde essa, que me pareceu faltar àquela gente, no capítulo mental. Estou perdido, queres ver que o estetoscópio agora é moda de trazer ao pescoço quando se vai jantar fora? Estou a ver a malta nos restaurantes, ao chegar o rosbife à mesa, a sacar do estetoscópio e, sobre o molho, analisar fatia a fatia, na tentativa de tirar a pulsação às fatias do bicho, pedindo ao rosbife para respirar fundo e dizer trinta e três. Dai a fazer reanimação boca-a-bife é um passo pequeno. Esta gente precisa é que lhes faça uma manobra de Heimlich ao cérebro.

Como esclarecimento, devo referir que a loja, apesar de dedicar a sua montra a estetoscópios, vendia uma parafernália de artigos médicos e de enfermagem. O que faz imaginar as conversas quando montarem a montra com arrastadeiras. Três velhinhos de bengalinha: olhem aquela, que bonita ali a reluzir, eu comprei a topo de gama ou eu estou a juntar da reforma para uma com cromado especial. A montra de Natal, com lacinhos, bolinhas, luzinhas e andarilhos e a da Páscoa com coelhinhos, ovinhos, amêndoas e condutores urinários.


Comentários

Anónimo disse…
Sabes...há pessoas que, por mais que se esforcem e, independentemente dos contextos, não se conseguem abstrair da sua arte e dos materiais associados!! Não há volta a dar! Não fosse esta tua dissertação e nunca teria eu reparado no arco íris de estetoscópios que vai naquela montra!E a verdade é essa!Desenvolve-se uma teia surpreendente de comentárias à volta daquilo!Foi engraçado constatar!Agora imagino quando decidirem fazer o mesmo aos esqueletos que por lá também se vendem...-"Olhe,levo o estetoscópio rosa e o esqueleto azul bébé, por favor..." Que fofo...!
Unknown disse…
está espectacular !!! ainda não tinha decidido entrar aqui e o que perdi!!! parabéns :)

Mensagens populares deste blogue

log entry: fear and loathing in las vegas...

Relembrando "fear and loathing in las vegas", para quem nunca viu a casa recomenda a visualização da fita na sua totalidade... "Fear and Loathing in Las Vegas is a 1998 film adaptation of Hunter S. Thompson's 1971 novel Fear and Loathing in Las Vegas: A Savage Journey to the Heart of the American Dream. The film, directed by Terry Gilliam, stars Johnny Depp as Raoul Duke and Benicio del Toro as Dr. Gonzo." wikipedia

log entry: a arte é um limão

A arte é um limão suspenso, aconchegado pelo tocar do vento,morto de cansaço pairando sobre uma superfície de cristal. A arte é como o vinho que entontece. É como a agulha que pica. Como um colchão que relaxa. Como a chiclete que cola. Como a imaginação que estica... Ré

log entry: sidegrade project by the book

Self-Sufficient Housing 1st Advanced Architecture Contest "Created for students and professionals to inspire changes in how new buildings are designed and constructed, the program challenges participants to design a self-sufficient and ecologically oriented dwelling. In the early 20th Century, the concept of “dwelling” was defined as a “machine for living”, a reference to a new way of understanding the construction of inhabitable spaces that characterized the Machine Age. Today, a century later, we face the challenge of constructing a sustainable or even self-sufficient dwelling, now a living organism that interacts with its environment, exchanging resources, and which functions as an entirely self-sufficient entity. The Institute for Advanced Architecture of Catalonia publishes here a selection of entries presented during the 1st Advanced Architecture Contest: Self-Sufficient Housing." Sidegrade Project, made by AND-RE + ricardo ...