Disse que eram apenas coisas. Na altura quis acreditar que sim. Um pouco sem pensar. Como quem toma uma aspirina.
Hoje sei que as coisas são apenas coisas até deixarem de o ser. Até serem envolvidas em nostalgia e trazidas pelas memórias. Os objectos são uma coisa apenas até determinado momento. São apenas objectos quando são apartidários de qualquer acontecimento relevante. Quando a sua existência simples de coisas inócuas não se cruza com os momentos. Assim, a determinado momento, tornam-se parte do corpo, carregados de historias resultantes da partilha dos dias.
A convivência com os objectos faz-se muitas vezes inconscientemente, até que a certo ponto eles são o veículo que nos desperta para memórias particulares e nos fazem lembrar momentos especiais e detalhes que, no seu momento, poderão até ter sido considerados irrelevantes.
Que fique claro que esta não é uma capacidade dos objectos. Eles não são assim por vontade própria. São as pessoas que tornam os objectos coisas do coração. É a nostalgia, criação do Homem, que se apropria das coisas e as transforma. Tal como acontece com os lugares, que são apenas sítios até serem vividos e se tornarem espaços emocionais dentro de nós. Estranha capacidade dos Homens em conseguir levar lugares dentro do corpo. O Homem consegue imaterializar um lugar, que sendo o mesmo lugar, se transforma em coisa imaterial sem forma física, com uma dimensão maior do que apenas a sua condição de sítio ou coisa, que pode ser levada no corpo e utilizada aquando da necessidade de reutilização das memórias.
Não são todos os que acabam por transcender a sua condição de coisa inanimada, são apenas alguns aqueles que se intrometem nas recordações e que acabam por ganhar espaço próprio. O objectos são os melhores veículos da memória e isso torna-os, a esses privilegiados, mais do que apenas coisas. Esta consideração por determinados objectos não é uma vontade fútil de posse, não é luxo, nao é sequer premeditada. Acontece sem as pessoas darem por isso. Os objectos entranham-se debaixo da pele, naqueles sítios indeterminados no mapa do corpo, como ilhas que não sabemos sequer existir, até ao momento em que são descobertos, mais tarde, tantas vezes tarde de mais, e trazidos inadvertidamente para a realização consciente das memórias que representam.
Os objectos são o que são até deixarem de o ser. Outras vezes, o tempo, eterno inimigo das memórias, traz o esquecimento e os objectos voltam a ser aquilo que eram. Mais tarde ou mais cedo, quando não houver ninguém para se lembrar das memórias, os objectos ficarão desprovidos de nostalgia, e serão despromovidos à sua condição inicial de ser. Ser apenas coisas.
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